Estreia com cara de evento. Na semana em que ele completaria 80 anos, e no mesmo ano em que a plataforma celebra 10 anos, o Globoplay lança Raul Seixas: Eu Sou, minissérie original em oito episódios que tenta decifrar o homem por trás do mito. Em vez de seguir a cartilha da biografia tradicional, a produção abre a cabeça do artista e convida o público a caminhar por dentro de suas ideias, delírios, contradições e escolhas, sem medo de experimentar na forma e no ritmo.
A aposta é alta: o ator Ravel Andrade encarna Raul Seixas em diferentes fases, do garoto curioso de Salvador ao provocador que lotou palcos Brasil afora e virou referência incontornável do nosso rock. O elenco traz ainda João Pedro Zappa, Amanda Grimaldi, Caroline Abras, Chandelly Braz, Julia Stockler, João Vítor Silva e Cyria Coentro. A criação é de Paulo Morelli, com direção dele e direção geral de Pedro Morelli, numa parceria do Globoplay com a O2 Filmes.
O que a série mostra
O recorte é amplo, mas o olhar é íntimo. A minissérie vai da infância em Salvador à mudança para o Rio de Janeiro, quando Raul se afirma como compositor e cantor, passando pelos primeiros grupos, pelos bastidores como produtor de gravadora e pelas colaborações marcantes. O roteiro encara as grandes canções, os momentos de plateias eufóricas, as quedas, as polêmicas e a reinvenção constante que virou sua assinatura.
Em vez de uma linha do tempo rígida, a montagem brinca com memórias, sonhos e flashbacks. A escolha estética, assinada por Paulo Morelli, faz a narrativa saltar entre cenas e pensamentos como se seguisse o fluxo mental do próprio artista. Em vários momentos, a trilha e as imagens caminham juntas para criar sentido: riffs conhecidos surgem quando a câmera revela a faísca de uma ideia; versos aparecem visualmente no cenário; shows icônicos são intercalados com momentos de vulnerabilidade fora do palco.
O resultado tem clima de viagem psicodélica, mas com pé no chão. Para dar corpo a esse mergulho, a série usa efeitos especiais e números musicais que não estão ali só para aplaudir o mito: eles ilustram o processo criativo, as influências e os choques de realidade. Há sequências em que o cenário se dobra, objetos ganham vida e a sala vira oceano — recursos que espelham a mente inquieta do Maluco Beleza e ao mesmo tempo mantêm o foco no personagem humano, com suas escolhas e consequências.
As músicas clássicas estão presentes não apenas como trilha de fundo. Gita, Metamorfose Ambulante, Maluco Beleza e Ouro de Tolo aparecem conectadas a contextos de criação, debates com parceiros e brigas com a indústria. A série mostra como o artista misturou rock com baião, humor com filosofia, crítica social com misticismo — e como essa combinação, tida como “loucura” por muita gente, acabou definindo um estilo que ninguém mais tinha.
As parcerias ganham destaque, com atenção ao momento em que letras, símbolos e referências esotéricas se cruzam com a vida concreta. O espírito provocador vem à tona: o artista que ria de si mesmo, cutucava o poder, desafiava modas e fugia de rótulos. A produção também enxerga as rachaduras: a saúde que cobra preço, os excessos, a solidão de quem sempre tenta ir além, os ruídos com gravadoras e a pressão de se manter relevante quando todo mundo espera outro hit.
Esse balanço entre brilho e sombra ajuda a desmontar a caricatura do “excêntrico” e apresentar o criador disciplinado, que lia muito, reescrevia, testava arranjos, buscava referências. Ao situar cada fase em seu contexto — dos anos de ditadura aos ventos de abertura, do rádio às fitas cassete e à TV aberta —, a minissérie mostra como ele surfou e também bateu de frente com o seu tempo.

Elenco, bastidores e por que agora
Ravel Andrade assumiu o papel central com a missão de equilibrar gestos, voz e vulnerabilidade. Em depoimentos à produção, ele fala do desafio e da honra de interpretar um personagem que muita gente sente como parte da família, do repertório afetivo do país. O trabalho inclui corpo, sotaque, respiração e, principalmente, olhar — aquele que, ao mesmo tempo, brinca e cutuca, aproxima e desarma.
O time criativo é extenso: além de Paulo Morelli, assinam o texto Denis Nielsen, Lívia Gaudêncio e Marcelo Montenegro, com colaboração de Andrea Yagui, Leo Ortiz e Marina Santos. Pedro Morelli comanda a direção geral, e a O2 Filmes dá respaldo de produção para as escolhas mais ousadas. A fotografia busca a textura dos anos 1970 e 1980 sem virar pastiche; o figurino passeia por fases marcantes, do jeans surrado às camisas estampadas e óculos que viraram imagem-padrão do artista.
Os diretores descrevem o projeto como um exercício de sinceridade com licença para enlouquecer: ser fiel ao personagem sem abrir mão da liberdade de experimentar. É um caminho arriscado, mas coerente com o homenageado. A edição costura cenas que poderiam, em mãos mais tímidas, se contradizer, e transforma isso em linguagem: o sujeito que muda o tempo todo, que deseja “ser uma metamorfose ambulante”, não cabe numa timeline reta.
O momento do lançamento não é casual. A estreia na semana dos 80 anos de nascimento de Raul conversa com um capítulo mais amplo do audiovisual brasileiro: o apetite por biografias musicais que resgatam ídolos e apresentam seus catálogos a novos públicos. No streaming, esse tipo de série cria um efeito colateral bem-vindo: reativa audições, reacende debates e provoca redescobertas. Jovens que conhecem uma música em memes ou trilhas acabam chegando nas faixas profundas dos discos e, com sorte, entendem o todo.
Para o Globoplay, é também um cartão de visitas para marcar sua década de vida. A plataforma vem apostando em originais que revisitam figuras da cultura nacional com linguagem de entretenimento, sem perder a mão do jornalismo de arquivo. Aqui, a proposta é colocar emoção e informação na mesma mesa: a obra fala, mas as cenas de bastidores e o contexto social ajudam a entender por quê ela nasceu daquele jeito.
O elenco de apoio funciona como mapa afetivo do protagonista. Amizades, amores, desafetos e parceiros aparecem como forças que empurram e freiam, que acolhem e racham. O roteiro evita romantizar tudo; há pessoas que brilham e outras que ficam pelo caminho, encontros que geram faíscas e projetos que não passam do esboço. Isso dá densidade à história e lembra que carreiras longas são feitas de acertos, erros e uma boa dose de acaso.
Se você é fã, há muitos pequenos prazeres: detalhes de estúdio, ensaios, a gênese de versos que viraram bordão, referências literárias que pautaram escolhas, piadas internas, trejeitos de palco. Se você está chegando agora, a série serve como porta de entrada: explica os porquês de tanta devoção, destrincha canções-chave, situa o ídolo no mapa do rock brasileiro e mostra a ponte que ele construiu entre ritmos e linguagens que pouca gente ousava misturar.
O formato em oito episódios ajuda a respirar cada fase sem correr demais. Em um capítulo, a faísca criativa é a estrela; em outro, o embate com o mercado; noutro, a estrada, as turnês, a resposta do público. Essa estrutura episódica favorece quem quer maratonar e também quem prefere ver aos poucos, saboreando as camadas.
Nesse caminho, a minissérie não foge de temas sensíveis. Os altos e baixos de saúde, a relação com o álcool, as dores de um corpo cobrado por décadas de intensidade aparecem com delicadeza e sem sensacionalismo. A ideia não é polir o personagem, mas entendê-lo. Mostrar o custo da genialidade e, ao mesmo tempo, a alegria que ela despejou no mundo.
Também há espaço para a discussão sobre liberdade artística: a tensão entre o que se quer dizer e o que se pode dizer em cada época, as negociações com a indústria fonográfica, a força do rádio e da TV na ascensão de um artista e a maneira como esses meios moldam estilos e decisões. O retrato coloca o criador diante das regras de seu tempo e, quando possível, mostra como ele driblou essas cercas.
Para quem gosta de bastidores técnicos, a produção capricha na captação de som dos números musicais, na mixagem que mantém a rugosidade do rock e nas cenas de performance que fogem do lip sync preguiçoso. As câmeras se aproximam do instrumento, do suor, do improviso. Em momentos-chave, a série desacelera para dar foco a uma nota, a um verso, a um silêncio — e isso ajuda a entender a engenharia emocional das canções.
Em termos de serviço: a temporada tem oito episódios e está disponível no Globoplay. Dá para assistir em sequência ou pinçar capítulos conforme a fase que mais te interessa. A experiência funciona nos dois modos porque a narrativa mantém coerência interna e, ao mesmo tempo, oferece arcos com começo, meio e fim dentro de cada episódio.
Se a missão de uma cinebiografia é apresentar a pessoa e o tempo em que ela viveu, Raul Seixas: Eu Sou passa pelo teste com uma proposta estética clara. Ela confia na inteligência do público, não subestima quem já conhece a obra e ainda abre espaço para quem chega agora. É entretenimento, mas também um convite para reouvir as músicas com outra cabeça — e talvez voltar a elas com mais curiosidade do que nostalgia.
- Oito episódios com recorte de infância, ascensão, parcerias, embates e legado.
- Números musicais que dialogam com o processo criativo, não só com o palco.
- Elenco liderado por Ravel Andrade e direção de Paulo e Pedro Morelli.
- Estreia alinhada aos 80 anos de nascimento do artista e aos 10 anos do Globoplay.
- Um olhar que combina humor, filosofia, crítica social e rock — como o biografado fazia nas canções.
No fim, fica a impressão de que a série entende o recado que o próprio personagem deixou em versos: aceitar as mudanças, sustentar a inquietação e tirar poesia do caos. Quem der o play não vai encontrar um busto de bronze. Vai encontrar movimento.